segunda-feira, 13 de julho de 2015

Anatomia do tempo

Anatomia do tempo.

Ilustração de Cau Gomez - Foto: Cau Gomez | Ag. A TARDE
Ilustração de Cau Gomez
De um lado, gente que daria tudo para poder deitar e só acordar oito horas depois. De outro, ainda mais numeroso, gente querendo diminuir cada vez mais as horas na cama. No centro, a tentativa do homem de dominar o sono
Não é difícil conseguir uma caixa de Stavigile, o remédio que promete manter as pessoas acordadas por 24 horas, sem sonolência ou perda de capacidade intelectual. No prazo de uma semana, é possível fazer o pedido e receber em casa o pacote azul-bebê com a indiscreta tarja preta sem precisar de receita médica.
Antecipando viradas de noite, fiz o pedido no blog "stavigilesemreceita" (há outros oferecendo serviços ilegais semelhantes, como "comprarstavigile" e "remédios controlados"), paguei R$ 210 e as cápsulas branquinhas, convites ao mundo da hiperatividade, pousaram em meu apartamento. Ainda que em fóruns na internet seja possível ler mensagens encorajadoras - "tomei nos últimos três dias, mente turbinada!" -, mantive as cápsulas na estante.
Stavigile chegou ao mercado brasileiro há três anos como um descendente do Provigil, vendido nos Estados Unidos desde meados da década passada. Oficialmente, trata-se de remédios para distúrbios graves do sono, como a narcolepsia, que faz os portadores adormecem de repente.
O laboratório de pesquisa da Força Aérea americana se encantou com o medicamento. Testes em pilotos de helicóptero mostraram que 600 miligramas da substância permitiam um estado de alerta por até 16 horas, depois de 24 horas em claro. Não demorou para o remédio assumir o papel popular de energético que outrora foi o da anfetamina.
Ainda são desconhecidos os efeitos dessas drogas em quem os usa apenas como inibidores de sono. Mas as vendas crescem. Segundo a Food and Drug Administration (FDA), agência que regula medicamentos no mercado americano, a demanda pelo Provigil aumenta, em média, 15% ao ano - isso só no mercado legal. Numa pesquisa inédita, divulgada em março deste ano, o Instituto Brasileiro de Estudos Toxicológicos e Farmacológicos (Ibet) mostrou que, em 2014, foram expedidos 10 milhões de receitas para remédios com substâncias inibidoras de sono. E o Ibet estima que 40% da população brasileira (80 milhões de pessoas) faça uso constante ou esporádico de energéticos ou remédios para manter o estado de vigília.
O que está claro, desde que os estudos sobre o sono começaram a se intensificar, há 20 anos, são os efeitos que noites maldormidas (ou não dormidas) provocam: déficit cognitivo, doenças cardíacas, baixa imunidade... O que agora surge como questão é o que leva tantas pessoas, com tantas informações sobre a importância do sono, a buscarem uma ponte que as impeça de cair na escuridão inanimada.
"O sono se desvalorizou", disse em entrevista por e-mail o crítico de arte norte-americano Jonathan Crary, ecoando as palavras de seu recente livro, Capitalismo tardio e os fins do sono (2014), em que ele  expõe a nossa busca por remédios que reduzam a necessidade de dormir. "Um sistema econômico que depende da produção e do consumo incessantes não é compatível com a inatividade do descanso humano. Estar sempre fazendo algo é o que nos confere importância hoje. Dormir é uma afronta ao capitalismo".
Hipnos
Frank Underwood, o ambicioso político da série House of Cards, nos explica que odeia a necessidade de sono porque, "como a morte, ele derruba os mais poderosos". Talvez seja o caso de explicar a Underwood por que dormimos. Até a metade do século passado, os cientistas acreditavam que o cérebro apagasse totalmente durante a noite, com o único propósito de descansar. Hoje, sabemos que entramos no universo de Hipnos (o deus grego do sono) por três motivos: economizar energia, fixar a memória e fazer a manutenção do corpo. Se você não dormir três dias, vai ficar péssimo. Não é optativo, é obrigatório.
"Quando você está acordado de manhã e suas ideias estão ótimas, começa a trabalhar e logo vai cansando. Gasta serotonina, que te faz feliz, gasta noradrenalina, que te faz atento, a dopamina... Qual a solução? Dormir para repor moléculas que usou durante o dia", explicou o médico Francisco Hora, nos corredores do Laboratório do Sono, no Hospital Português. Professor de medicina do sono na Ufba, ele defende que o principal problema que enfrentamos na hora de dormir é psicológico, espécie de "privação voluntária do sono".
"Para você ter um equilíbrio, é preciso que obedeça ao que mandam os nossos ancestrais, que inventaram o sono REM (de rapid eye movement, estágio em que ocorrem os sonhos) e adaptaram nosso organismo ao ciclo dia-noite. Mas nós inventamos esse estado de iluminação permanente e não temos mais o momento de parar tão claramente demarcado".
O ato de dormir possui uma história densa, assim como tudo que é supostamente natural. Jamais foi algo monolítico e ao longo de séculos assumiu diversas formas e padrões. O adulto dorme hoje cerca de seis horas e meia por noite, uma redução do patamar de oito horas da geração anterior e de dez horas do começo do século 20. Antes mesmo da era moderna, é possível constatar incursões contra o tempo na cama. Para o filósofo inglês John Locke (1632-1704), por exemplo, o sono era uma interrupção lamentável das prioridades que Deus estabeleceu para os humanos: serem industriosos e racionais.
Controle
Foi por indicação de uma paciente do Laboratório do Sono que encontrei Maria Antônia (o nome é fictício), uma usuária de estimulantes e tranquilizantes, remédios para dormir e para não dormir. Há dois anos, ela foi apresentada à Ritalina por vias legais, após um psiquiatra diagnosticá-la com ansiedade e déficit de atenção. A "Rita", como é conhecida, é considerada, assim como outras "inas" (cocaína, cafeína e anfetaminas), um psicoestimulante - segundo o Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, o consumo deste medicamento no Brasil cresceu 775% nos últimos dez anos.
Em busca de "autocontrole sobre o corpo", Antônia também chegou, dessa vez por vias não legais, ao Tranquinal, medicamento que promete o efeito inverso: dormir profundamente. Há três meses, ela equilibra-se na dupla Ritalina-Tranquinal e diz sentir-se bem, apesar "de uma leve pressão na cabeça e sudorese nas mãos". Para as semanas intensas de trabalho: liga-se com Ritalina. Para os finais de semana: apaga-se com Tranquinal.
Uma medicação bipolar como essa parece encontrar equivalência em nossa inquietação mais ampla com o sono. Sono e sexo talvez sejam as duas maiores preocupações em termos de quantidade - estou dedicando o tempo que quero a isso? Como poderia agir para conseguir o quanto desejo? O controle sobre o tempo do sono, como lembra o jornalista David Randall, no livro Dreamland (2012), "soa como a nossa necessidade de domesticar uma condição primitiva que, ao contrário do sexo, demanda um tempo capaz de perfurar nossa agenda de compromissos e ambições".
Uma semana após conversar com Antônia, encontrei o consultor financeiro Lauro Leda. Acostumado ao serpentear dos negócios e a uma rotina que o deixava em guerra com a cama, ele, depois de gastar "em travesseiros, colchões, ervas que acalmam e odorizantes", partiu para uma consulta médica na qual o diagnóstico foi estresse. Receita: uma cartela do tranquilizante Frontal. Reduzindo o tempo que o usuário necessita para cair no sono, o Frontal, como quase todos os remédios de sua categoria, não foi feito para consumo a longo prazo. Leda, para quem "as pessoas que criticam o uso desses tipo de medicamento não sofrem com insônia", afirma dormir melhor e utilizar o Frontal há um ano, sempre com receita renovada.
"A pessoa precisa analisar sua situação e tomar o sedativo ou estimulante receitado em último caso. Técnicas certas de relaxamento e fitoterápicos podem resolver muitos problemas", diz o neurologista Fernando Martinho, pesquisador do Instituto do Sono em São Paulo. "Não se trata apenas de saúde, mas de determinar se queremos passar a vida como ratos de laboratório, sempre caindo, sonolentos, ou hiperativos como bonecos de corda".
Belen Esparis, médica do hospital Mount Sinai, em Miami, e uma das principais especialistas do mundo em distúrbios do sono, é uma defensora moderada das drogas que manipulam a hora de dormir. Numa entrevista por telefone, após discorrer longos minutos sobre os efeitos que o uso indiscriminado de soporíferos e estimulantes provoca (anorexia, depressão, agitação, tremores, alucinações e, claro, dependência), ela foi ao ponto elementar: "Se o sono está sendo minado agora, essa é mais uma das facetas do abandono das proteções sociais aos indivíduos; as empresas não olham para o descanso humano. Se parecemos trabalhadores crônicos, não é por escolha própria, mas por causa de uma necessidade econômica".
Zzzz
Há empresas e funcionários que seguem na contramão do mundo acostumado a operar em ritmo alucinante. A quietude, neste caso, é vista não só como medida preventiva, mas como recurso para aumentar a produtividade; folgas, pausas e espaços revitalizantes entram nesta conta. Qualquer mirada para o lado, no entanto, nos dirá que essa ainda é uma postura acanhada na cultura do trabalho. Continuamos, talvez, apanhados pela voz que nos lembra que dormir é para os fracos.   
"O capitalismo, com certeza, danifica e continuará danificando o sono, mas o sono sempre estará conosco", lembrou Francisco Hora, que assistiu ao boom dos soporíferos no país (Rivotril, Lexotan, Frontal) e agora vê a ascensão dos estimulantes. "No tempo dos nossos avós não tinha tanta iluminação nem tanto trabalho e demanda por atenção. Isso é tudo muito recente. Vai demorar milhares de anos para que esse novo Homo sapiens encontre todos os mecanismos metabólicos para sentir-se bem adaptado com duas, três horas de sono".
Do ponto de vista da evolução, o sono permanece um comportamento difícil de explicar. Para o homem das cavernas, dormir podia significar nunca mais acordar, dada a chance de ser atacado por um predador ou tribo inimiga. Hoje, quando os predadores são outros, o sono é uma obrigação paradoxal. Nas pequenas pílulas brancas do Stavigile em minha estante, ironicamente, há pequenos riscos que lembram uma molécula de DNA, como numa promessa de futuro em que estaremos dotados de recursos para superar o sono - os genes que ainda não temos.
FONTE:atarde.uol.com

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